“São tempos difíceis para sonhadores”. Lição essa bem pronunciada no imperdível longa francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulan”. Porém hoje, após as últimas tragédias, tal expressão parece ganhar um sentido ainda mais amplo: São tempos difíceis para os sonhadores.
Hostilidade, descaso, ganância, negligência, ignorância e intolerância parecem contaminar o mundo, no mesmo ritmo que a lama devasta nosso território, que o sangue escorre pelas ruas de Paris, que a dor se alastra pelo Quênia e que o medo assombra o Japão.
O mundo clama por socorro. Os olhares se elevam e buscam um refúgio, uma explicação, uma solução, em qualquer divindade, entidade ou energia, que seja, que possa de alguma forma acalentar os corações, que se percebem tão aflitos, confusos e perdidos. O mundo clama por oração, por solidariedade, por amor. O mundo clama por sonhos. Mas como sonhar? São tempos difíceis para os sonhadores…
São tempos difíceis para Minas Gerais, para o Espírito Santo, para o Rio Doce, para um dos mais ricos ecossistemas mundiais. Vidas, sonhos e esperanças destruídos e arrastados tais qual uma contaminada lama, sem destino, que apenas segue devasta, incontrolável e impune. Um desastre que ganha novas proporções, gradativamente, novos riscos e ameaças surgem, o estado de alerta é constante. Calamidade perceptível. Difícil dormir, difícil descansar, difícil sonhar.
Ora, são tempos tão difíceis para os sonhadores… Do outro lado do oceano, uma das cidades mais inspiradoras do mundo é palco de um hostil atentado homicida, vidas destruídas com armas, fogos e explosões. Uma tragédia que está sendo considerada a maior onda de violência contra a França desde a Segunda Guerra Mundial… Paris, a cidade luz, famosa por sua aura, por sua beleza, pela sua arte, por despertar o romantismo, por inspirar sonhos, agora não parece mais sonhar, apenas percebe-se perplexa e cética diante do vermelho que se espalha pelas suas calçadas… Ah, mas como são difíceis os tempos para os sonhadores…
São tempos difíceis para aqueles que são constituídos de humanidade, para aqueles que se sensibilizam, que se envolvem, que querem abraçar o mundo, mas sabem quão pequenos são seus braços. São tempos difíceis para um mundo que tanto precisa de lágrimas, enquanto essas brotam em forma de sangue, em forma de lama. São tempos difíceis para sonhar, quando o sonhar exige acreditar, ter fé e esperança. São tempos difíceis, mas não impossíveis. Enquanto o sonho nos parece distante, o convite à ação bate à nossa porta. Afinal, nunca haverá tempo difícil para o agir.
São tempos que nos exigem levantar da cadeira, desviar o olhar que se eleva e posicioná-lo à frente, ao lado, ao redor. Tempos que nos exige consciência, confronto com uma realidade que nos corrói a alma, que nos devastam os sonhos, mas que nos abrem os olhos. São tempos que nos cobram atitudes. Atitudes humanitárias e individuais.
É este o momento em que você constata quão curtos são seus braços para abraçar o mundo, mas percebe que eles foram feitos do tamanho ideal para abraçar o próximo. São tempos de solidariedade, não somente na ideologia, mas na prática diária e constante. Lembrando que solidariedade não se resume tão somente a fazer doações e ofertar trabalho voluntário aos que tanto precisam, claro, essas são atitudes necessárias, mas não nos limitaremos a elas.
São tempos de perceber o quanto cada atitude individual é importante para uma mudança mundial. É tempo de enxergar que o mundo é constituído por cada ser humano, cada um de nós interfere, à sua maneira, na forma como caminha a humanidade, assim como uma praia é formada de grão em grão de areia.
Nosso mundo cheio de regras e condicionamentos é um lugar em que os sonhos não encontram terra arada para que possam florescer e, assim, temos percebido uma geração cada vez mais triste, frustrada com suas escolhas profissionais, vivendo de maneira mecânica e robotizada.
Desse modo, temos levado vidas melodicamente tristes porque somos incapazes de diferenciar uma jibóia engolindo um elefante de um chapéu, tampouco, possuímos a sensibilidade para entender que somos formados pela “soma de pequenos e belos detalhes” e que são esses detalhes que nos tornam a pessoa que somos e nos confere beleza.
Podar os sonhos das pessoas, a fim de transformá-las em massa de manobra de uma sociedade sufocante, um decalque de um modelo-padrão, nem de longe é saudável, muito menos torna a vida um lugar melhor e mais bonito.
Todos nós nascemos livres e, portanto, por mais que existam grades tentando nos prender, ainda possuímos o direito de sacudi-las e proporcionar um dos mais belos sons da vida – o som de almas querendo exercer o direito de voar.Talvez seja difícil compreender indivíduos que carregam tanta paixão dentro de si, pessoas que não se contentem em ser apenas mais uma etapa de uma produção em série.
Os sonhadores não se contentam com o mundo como ele é, porque isso é sempre a decisão mais cômoda. Sonhadores não se satisfazem apenas copiando o mundo, pois eles possuem magia e esta lhes permite a audácia de construir novos mundos.
Precisamos valorizar a diferença que existe em cada gesto pessoal. Acredite, um sorriso diário ao motorista do ônibus pode mudar o dia daquele ser humano, e, assim, consequentemente mudará o dia daqueles que o cercam. Tal qual uma corrente. Afinal, como já dizia Bob Marley: “Se todos nós dermos as mãos, quem sacará as armas?”
Façamos nossa parte. Vamos agir, seja com grandes feitos ou com pequenos e singelos gestos cotidianos. São tempos difíceis para os sonhadores. Mas eu ainda insisto em sonhar… Pois, apesar dos tempos difíceis, sempre haverá espaço para sonhadores empenhados na concretização do sonho. Insistentes que somos, abriremos os braços enquanto acolheremos um a um, cada abraço no seu tempo, cada enlace em seu espaço… Assim seguimos sonhando com o dia em que abraçaremos o mundo, com o utópico dia em que não haverá mais esses tempos, tão difíceis para os sonhadores.
A bem da verdade, não é fácil ser um sonhador em um mundo tão pragmático, onde as emoções são apresentadas no plano cartesiano, como se tudo que sentíssemos pudesse ser mensurado através de fórmulas matemáticas. Não é fácil porque toda vez que decidimos alçar vôos mais altos, tratam de cortar as nossas asas, já que quem caminha uma vez pelo céu, jamais vai se contentar com o interior de uma gaiola.
Lembrando Shakespeare:
“Enquanto houver um louco, um poeta e um amante haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança”.
Sendo assim, a vida precisa dos sonhadores, já que sem eles, a luz a que os poetas dão o nome de esperança desaparece e a vida torna-se um lugar muito escuro, cheio de neblina e gelado.